segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Carroças Brasileiras

Tive já mtos veiculos que me ensinaram algumas lições valiosas. No final da ditadura ganhei uma Brasilia 1980 com motor fundido e completamente acabada por cinco anos de uso desapiedado. Ao longo de cinco anos em que esteve comigo gastei mais que o valor de uma Brasilia nova (por volta de 18 K US$] para reconstrui-la e deixa-la perfeita. Mas quão longe da perfeição encontrava-se aquela máquina! Era uma torrente constante de gastos, porque o que parecia bom e bonito ao sair da oficina ou da concessionaria mostrava-se ruim, feio ou quebrado em poucos meses de uso. Essa era a época clássica das carroças Brasileiras: VW, GM, Ford & Fiat, as amigas da ditadura, que pagavam pela reserva de mercado e como oligopolio entregavam qualquer lixo, e nós nos viamos obrigados a engolir, nao havia concorrencia nem qualquer ética de qualidade. Fui estudar nos USA e comprei um japones Isuzu Tropper com cinco anos de uso, tendo pago menos de um quarto por este veículo [4 K US$] do que gastei com a Brasilia em Manaus. Ora, mas este era um SUV, com tração nas quatro rodas, uma piruona tipo Rural muito melhorada, com pneus borrachudos grandes, motor potente, uma delicia de carro. Rodei mais de 60 mil milhas (100 mil km) e em cinco anostive que fazer uma ou outra manutenção, mas apenas 1% se comparado com o que tive que fazer na Brasilia. Voltei a Manaus e com umas economias [12 K R$] comprei o primeiro carro zero, um fiat Uno mille com o qual fiquei cinco anos. Incomparavelmente melhor do que a Brasilia, uma prova de que a abertura do mercado nacional para concorrencia estava produzindo resultados, ainda assim era um gambetinha, um carrinho sem superlativos, passável para a época, mas me deu mta manutenção e não chegava aos pés do Isuzu. Ainda era carroça Brasileira. Em 2000, comprei, também zero, uma Toyota Hilux (SR5, pickup 4 portas) e me alegrei com sua incomparável qualidade e outros atributos que a classificam como fora da categoria carroça. Mas será que escapava da categoria porque não era fabricada no Brasil? (vinha da Toyota Argentina, com qualidade japoneza) Não obstante a melhora, era um projeto de 1967, virtualmente sem alterações significativas. Estávamos acostumados no trabalho na floresta, ao desconforto inconcebível da Toyota Bandeirante fabricada no Brasil, um carro "de boi" a diesel dos anos 50, um lixo automotivo no qual se salvava somente o motor mercedes; mas até sua grande potência era prejudicial, pois desmontava os paralamas e afetava as portas devido a sua excessiva vibração, e quebrava frequentemente a suspensão dianteira devido ao seu peso, e as cruzetas e transmissão devido a sua força bruta. O desenho da hilux 1967 em 2000 era anos luz melhor que o desenho da Bandeirante 1950 em 2000, nem por isso pode-se dizer que a hilux era um veículo avançado. Tinha bancos muito baixos, a tração dianteira somente descendo no barro para ligar nas rodas, e não tinha praticamente lugar para trecos dentro da cabina, um aproveitamento pouco inteligente de espaço. Então, em 2003, veio a era da iluminação na minha carreira automotiva: um peugeot 206 1.6, com 110 cv e 16 valvulas [custou 30 K R$]. Era azul turqueza metálico, uma cor tão viva e linda que dava vontade de comer, um espetáculo. O acabamento e os detalhes do carro eram de francês, um primor de bom gosto. Foi o primeiro carro que tive com freio a disco nas quatro rodas, air bag e computador de bordo significativamente sofisticado. Muita força no motor, ainda assim era duas vezes mais econômico na gasolina que a Brasilia com motor de fusca e mesmo mais que o Uno com motor mil. Entretanto, este também não era uma carroça Brasileira, era a primeira série montada no Brasil, mas com praticamente todos componentes importados da França, era idêntico ao Peugeot disponivel para os franceses. Tinha apenas tres defeitos de projeto: pouquissima força em ponto morto (não foi feito para congestionamentos), suspensão muito dura (foi desenhada para as estradas tapetes de veludo da Europa) e tinha pouquissimo espaço para as pernas no banco de trás. Durante 5 anos este veículo foi um prazer completo, nos deu muita alegria e satisfação. Entretanto, com 100 mil km começamos a experimentar a obsolescência programada. Começou a quebrar muitas peças, uma manutenção caríssima (chave de ignição por R$ 300? bóia do tanque por R$ 900?), e o valor de mercado desproporcionalmente desvalorizado (talvez pelo custo de manutenção...). Sempre fiz manutenção na concessionaria, então comecou a pesar o custo alto de peças e serviços. Aí, acompanhado nosso amado carro em suas passagens cada vez mais frequentes pela agradável sala de estar francesa que é a concessionaria Peugeot, fomos inspecionando os novos modelos, cada vez mais Brasileiros: sumiram os airbags, pioraram os freios (dianteiro monodisco não ventilado, trazeiro tambor), diminuiram o motor, caiu a qualidade do acabamento. E o pior de tudo, subiram os preços ridiculamente [em 2008 um veiculo equivalente ao nosso já custava mais de 40 KR$]. Que HORROR, a Peugeot adicionou à obsolescência a indescência, haviam aprendido a fabricar carroças Brasileiras!! O gerente da Peugeot meu deu uma boa razão, quando lhe questionei sobre a obsolescência da sua marca: ta na hora de pegar um zero km. Entendi o recado, mas buscando dar a resposta merecida a maldade capitalista da obsolescência programada e ao virus da carroça brasileira que acometeu a Peugeot Brasil (pensei que era exclusividade americana), subimos a rua e fomos então buscar na Honda um veículo que tem fama de não quebrar e de baixa manutenção. Entramos no consórcio para um New Fit, lendo tantos comparativos e avaliações elogiosas de revistas especializadas, e também escutando parentes que tiveram Fit por anos, felizes com o carro e sua qualidade. A história do "New" Fit é tão inglória que merece um novo post. Aguardem.

Burocracia cria desnecessário Custo Ciência Brasil

Cientistas, diferentes de muitos outros servidores públicos, são figuras fáceis de auditar, porque seu maior capital é justamente seu nome. Reconhecendo este fato simples, e atendendo a demanda de uma atividade essencial para a colocação do País em condições de igualdade numa era de acirrada competição global, o MARE (o extinto ministério da administração e da reforma do Estado) solicitou e obteve em 1998 do congresso aprovação para uma alteração na lei das licitações, incluindo o seguinte texto:

/Lei 8.666, Artigo 24 (da dispensa de licitação), inciso XXI - para a aquisição de bens destinados exclusivamente a pesquisa científica e tecnológica com recursos concedidos pela CAPES, FINEP, CNPq ou outras instituições de fomento a pesquisa credenciadas pelo CNPq para esse fim específico (redação dada pela lei no 648/98)./

Quem está acostumado com o dia a dia da administração de ciência sabe que para o establishment jurídico/burocrático público este dispositivo libertador da lei geral das licitações, é letra morta, não tem valor prático. Como resultado, toda a comunidade cientifica Nacional fica submetida a um processo burocrático de aquisição de bens e serviços que é ao mesmo tempo arcaico, ineficiente e altamente inapropriado aos projetos de pesquisa que dependem de presteza nas aquisições para se viabilizarem. Atônitos com o que parecia ser um ato arbitrário e ilegal do establishment jurídico/burocrático consultamos informalmente o Ministério Publico Federal.A resposta nos deixou ainda mais atônitos: aparentemente trata-se de um dogma jurídico amplamente difundido e seguido à risca por juristas e administradores, de que se a lei não explicita, então a interpretação legal é conservadora e restritiva. Em outras palavras, se a lei não especificou "o que" pode ser adquirido para a ciência e tecnologia sem licitação, então /nada/ pode ser adquirido sem licitação.
A pessoa no Ministério Público que consultamos pareceu compreender nosso espanto, foi simpática à causa científica e sugeriu que a melhor forma de remover este desnecessário custo ciência Brasil seria ir de novo ao legislativo e obter dos legisladores uma nova alteração do dispositivo que dispensa a ciência e tecnologia de licitações. Só que agora incluindo de maneira explicita todos os bens e serviços que poderiam ser dispensados de licitação. Passamos então imaginar os nossos políticos debruçados sobre uma lei já alterada por eles em 98, somente para adequá-la às exigências do dogma jurídico prevalente. Seria hipoteticamente mais ou menos como:

/Nova redação (Junho/2010), Lei 8666, artigo 24, inciso XXI,
anexo I, *bens e serviços autorizados para aquisição sem licitação para a ciência e tecnologia*:

-citokinona 30 mg vial (e mais 65 mil reagentes, todos listados por nome e apresentação)
-laser emitting diode 327 um (e mais 30 mil componentes eletrônicos, todos listados por nome, aplicação e propriedades)
-atomic absorption analyser (e mais 2500 instrumentos para analise, todos com especificação)
-HPLC controller ( e mais 350 mil componentes para instrumentos, todos devidamente especificados)
-DNA sequencing plates (e mais 8000 aparatos, sempre sem esquecer a justificativa e aplicação)
-IDL processing package (e mais 800 pacotes de software, novamente, sem esquecer as especificações)
-mateiros em Eurinepe, AM (e em mais 5 mil municípios, todos listados)
-consultor em biosimbiótica ( e mais 4000 disciplinas, especialidades e sub-especialidades)
-tecnologista junior em luz síncrotron (e mais 7827 especialidades, todas devidamente explicitadas)
-analise de espectro gama ( e mais 58244 diferentes tipos de analises espectroscópicas)
-analise de sangue de tatu ( e mais 80 mil diferentes analises de materiais biológicos, todas devidamente especificadas)
/

Tal lista, de absurda e inviável mais parece parte de uma opera bufa. Mas mesmo supondo que alguém com tempo e disposição se desse ao trabalho de construí-la, novos reagentes, analisadores e especialidades surgem todo dia nesta atividade humana que por excelência inventa, descobre e cria. Como manter a lista atualizada, para que as novidades não sejam cortadas pela mesma interpretação restritiva do dogma jurídico prevalente?

À justiça compete a imparcialidade. É compreensível que, em uma cultura lasciva em relação à ética pública e à honestidade administrativa, exista mais cadeados nos cofres públicos. Compreensível, portanto, a origem do dogma jurídico que hoje é um dos principais responsáveis pelo custo ciência Brasil. Mas se não quisermos nos condenar ao atraso cientifico e tecnológico é urgente confrontar a interpretação restritiva da lei.Não está explicito na lei que podemos respirar, nem por isso somos proibidos de fazê-lo. Mas está sim explicito na lei que a ciência e tecnologia podem adquirir bens e serviços sem licitação, visando à eficiência do setor. Em um País onde um poder (justiça) se sente na obrigação e autorizado a anular a ação, expressa na lei, de outros dois poderes (executivo e legislativo), simplesmente pela observância automática de um dogma jurídico, sem análise de caso, sem levar em conta o beneficio da sociedade, então nos parece que este é um País disfuncional.

Colocar um crédito de confiança nos cientistas, como faculta a interpretação livre da lei 8666, significa investir no avanço necessário que beneficiará toda a sociedade. Digite no google o nome de qualquer membro da comunidade Brasileira de ciência e tecnologia seguido da palavra Lattes e em segundos o currículo on-line listando toda a vida profissional desta pessoa estará a disposição. Qual outra atividade do setor público tem sua produção nominal, e pessoal, postada na internet? Quais juizes ou administradores têm seu currículo ou produtividade postados para a sociedade ver? Assim, distinto de outros setores da administração pública, para a ciência não existe forma melhor de auditoria do que cobrar resultados. Quem, depois de lutar as vezes duramente para conseguir financiamento, usará mal um dinheiro de pesquisa? Mas se assim o fizer, provavelmente não terá resultados para mostrar, e rapidamente estará excluído do sistema de financiamento. Aí está nosso maior controle, é desta forma que o dinheiro público investido em pesquisas e desenvolvimentos vai ser de fato valorizado.

Já quando a competência cientifica que o País desenvolveu com investimentos de décadas é nivelada por baixo, pela tabula rasa da desonestidade que grassa no setor público, o custo Ciência Brasil, este sim, limita e mesmo impede pesquisas vitais. Pesquisadores respeitados e brilhantes acabam, somente por isso, apresentando produção muitas vezes pífia. O dogma jurídico, que existiria para impedir a roubalheira, garante a ineficiencia, é um dos piores algozes da inovação e, a ironia maior, não consegue impedir roubos, como o noticiário nos da conta quase todo dia.

O apelo claro deste argumento deveria colocar a racionalizacao das licitacoes para os cientistas nao como privilegio consagrado em lei, mas como um exemplo poderoso de que merito verificado e transparente simplifica a administracao publica e garante resultados palpaveis para a sociedade. Coloque-se todas as transacoes e meritos envolvidos dos procedimentos de utilizacao de dinheiro publico na internet, como ja se faz com a ciencia, e uma nova etica surgira, liberando juristas e administradores da funcao menos nobre e incapacitante que tem sido a geracao continua de impedimentos e cadeados, que sufocam a sociedade.