quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Linchamento: esses animais

20/02/2014
 
Saiu na Folha de hoje (20/2/14):

Com as próprias mãos
Tudo começou com um adolescente acusado de assalto agredido a pauladas e acorrentado nu a um poste, há 20 dias, no Flamengo, Rio.
Desde então, casos de justiçamentos surgiram em todo o país - e ganharam enorme repercussão em vídeos divulgados nas redes sociais.
Só na segunda e na terça-feira houve três agressões a criminosos em Goiânia. Vídeos surgiram com suspeitos subjugados também no Piauí e em Santa Catarina (…)
‘A sociedade civil está ficando progressivamente descontrolada’, diz o sociólogo José de Souza Martins, professor aposentado da USP, que há mais de 20 anos documenta linchamentos no país (…)
Há atualmente uma média de um linchamento por dia no Brasil, ante quatro por semana anteriormente, afirma Martins (…)
Por trás dos casos há, continua Martins, uma crescente descrença nas instituições, o que potencializa os linchamentos. Reduzi-los dependeria, diz, de a polícia ser mais eficiente ao deter criminosos e de a Justiça ter agilidade ao julgá-los e condená-los

Países diferentes têm posicionamentos diferentes para a o nível de reação que vítimas de crimes podem ter. Nos EUA, por exemplo, boa parte dos Estados adotam a Castle Doctrine - mais comumente conhecida ‘Make my day’ (da expressão tornada célebre por Clint Eastwood no personagem Dirty Harry) - que permite o uso de força letal contra qualquer pessoa que entre sem permissão em sua residência. Estados como Ohio chegam a estender a permissão para o uso de tal violência até mesmo a veículos.

Já na Inglaterra, até muito recentemente, você seria condenado à prisão perpétua se atirasse em um criminoso armado que invadisse sua casa na calada da noite.

Mas todos os países minimamente civilizados têm algo em comum: cabe à Justiça julgar e punir. Mesmo no ‘make my day’, a ideia é a proteção de pessoas e propriedade contra um perigo iminente, e não o justiçamento do criminoso pelos indivíduos. Você não pode sair correndo pela rua para atirar contra o criminoso que havia invadido sua residência.

E há duas razões para isso.

A primeira é para a sobrevivência do Estado. Se o Estado deixa de ser o único garantidor e provedor de Justiça e perde o monopólio da força, ele deixa de ser essencial. Ele passa a ser um coadjuvante. Para que pagar tributos para um Estado para o qual temos uma alternativa mais célere e mais barata?

A segunda é para a sobrevivência da própria sociedade. A razão pela qual delegamos o monopólio da força ao Estado não é porque confiamos inteiramente no Estado: é porque não confiamos inteiramente em nós mesmos.

Se eu posso fazer justiça com minhas próprias mãos, outros também podem. E cada um de nós pode resolver fazer justiça usando regras diferentes porque temos padrões morais e éticos distintos. A minha justiça pode parecer injusta a um terceiro, assim como a justiça desse terceiro pode nos parecer injusta. Com milhares de padrões individuais, um único olhar ‘errado’ pode desencadear a possibilidade de ‘justiçamento’. Uma guerra de todos contra todos.

Se eu posso impor minha justiça (ou injustiça) sobre o terceiro, ele também pode fazer o mesmo contra mim. O custo dessa constante possibilidade é financeira e emocionalmente enorme. Eu não só passarei a viver todo o tempo com medo de ser vítima da (in)justiça alheia, mas terei de me resguardar contra essa permanente possibilidade. Meu objetivo deixa de ser viver, e passa a ser apenas sobreviver. Voltamos a agir e sentir como todas as outras espécies animais. A possibilidade de prosperarmos desaparece porque o tempo e recursos disponíveis são usados de formas ineficientes. Não para construir algo novo e progredir, mas para proteger aquilo que já existe e não regredir.

A razão pela qual não podemos fazer justiça com as próprias mãos não é porque os criminosos são ou não animais (ou qualquer outro termo pejorativo que queiramos empregar), não respeitam as normas básicas da sociedade e não merecem ser punidos. A razão pela qual não podemos fazer justiça com as próprias mãos é que nós não somos e não queremos ser animais.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Brasil em 2014: "Pifando, lotado e caro"

FSP 06/02/2014 03h00

Está tudo lotado, está tudo caro, há escassez evidente de chão para os carros, de espaço nos trens ou de estrada e porto para transportar a comida que as fazendas produzem. A paciência da população escasseia também.

A infraestrutura não deu conta de aguentar nem meia dúzia de anos de crescimento bom seguidos deste triênio de lerdeza triste da economia. Além de competência, falta dinheiro para construir mais. Para haver mais dinheiro, grosso modo, também é preciso crescer mais. Mas a presidente e seus adeptos acham que isso de crescimento da economia, do PIB, é conversa mole reacionária.

"O Brasil deu 'overbooking'", observa uma amiga em uma "rede social". Quer dizer, venderam mais passagens do que há lugares neste nosso avião, ou neste trem aqui. Isso aparece na inflação de preços, de mau humor, no deficit externo, na lotação de tudo.

Dia sim, dia não, há falha e/ou tumulto nos trens de São Paulo. Estatísticas (quilometragem média rodada entre falhas) e engenheiros dizem que o número relativo de problemas caiu de 2003 até pelo menos 2012 (ainda não saíram os dados de 2013). Mas, como a rede de trens ficou maior, o número absoluto de falhas cresceu, criando a impressão de piora. O povo irritado e os sindicalistas da área dizem que isso é meio cascata.

Pouco se confia nos dados e nos relatos oficiais, dada a autoindulgência dos governantes. Geraldo Alckmin (PSDB) foi ligeirinho ao atribuir o tumulto de terça nos trens da CPTM a "vândalos", o que até pode ser verdade, mas a afirmação suscita escárnio, dada a lerdeza na construção do metrô e na investigação da bandalheira nos negócios com trens.

Isto posto, o número de passageiros transportados por dia útil em São Paulo cresceu 57% nos Metrô e 109% nos trens da CPTM, entre 2004 e 2012, um aumento brutal da demanda. No entanto, como as estatísticas de oferta (lugares, rapidez etc.) são ruins, a gente não sabe precisar o tamanho da escassez. Apenas sente.

Outro sinal suspeito de problema são os apagões de energia. A oferta de energia e o sistema de transmissão melhoraram bem desde o apagão tucano de 2001. Afora desastres meteorológicos ainda piores, parece que não vai faltar energia, embora a credibilidade das explicações oficiais nessa área seja o que se sabe, desde 2001 até agora. A própria Dilma Rousseff fez troça da história dos raios que causam blecautes.

Apesar da situação aparentemente melhor, os preços no "atacado livre" de eletricidade estão em recordes lunáticos, e a gente depende da energia cara e poluente das termelétricas. Ruim com elas, pior ainda sem elas, o que não é um consolo. A situação está apertada mesmo com três anos de crescimento ridículo da economia. Caso o país tivesse crescido, haveria falta de luz no meio do túnel?

Além do mais, o mercado de eletricidade, entre outros, está desorganizado devido a bobagens do governo. A conta de luz apenas não ficou mais cara porque o governo subsidia (banca) o custo extra das termelétricas, no entanto se endividando a juros doidos para fazê-lo. Enfim, preços "abaixo do custo" estimulam o consumo além do que seria recomendável, dada a escassez de água (e, pois, potencialmente, de energia).

O Brasil está batendo pino. Deu mesmo "overbooking".


vinicius torres freire Vinicius Torres Freire está na Folha desde 1991. Foi secretário de Redação, editor de 'Dinheiro', 'Opinião', 'Ciência', 'Educação' e correspondente em Paris. Em sua coluna, aborda temas políticos e econômicos. Escreve de terça a sexta e aos domingos