26/9/2011 - 09h55
por Lúcio Flávio Pinto*
A
Amazônia tem a maior bacia hidrográfica do planeta, que drena rios espalhados por três milhões de quilômetros quadrados, com 8% da água superficial da Terra nesse circuito. Apesar disso, a possibilidade de gerar energia em grande escala na região sempre foi encarada com receio ou desconfiança.
A fronteira energética amazônica fica distante pelo menos dois mil quilômetros dos principais centros consumidores. Levar energia até eles exige geração em grande escala e extensas linhas de transmissão em alta tensão. Sem essa combinação, o empreendimento não se torna econômico.
Mas não basta montar uma equação viável comercialmente e sólida como obra de engenharia. As características naturais amazônicas são adversas a intervenções humanas desse impacto. Os rios são de planície, com baixa declividade natural. Represados, suas águas voltam sobre seu curso, submergindo áreas extensas. Os danos sobre um vasto conjunto de riquezas biológicas são elevados e profundos.
Até 1973, imaginava-se que apenas barragens de baixa queda seriam construídas na Amazônia, para atender demandas localizadas, próximas do aproveitamento energético. Nesse ano, o governo federal criou a Eletronorte e decidiu mudar a abordagem. A Amazônia teria que fornecer energia abundante e transmiti-la por longas distâncias até os centros mais desenvolvidos do país, que, assim, continuariam a ser os mais desenvolvidos (e a Amazônia permaneceria como fronteira, ou colônia).
Com essa visão, o regime militar construiu a maior (Itaipu, no Rio Paraná, no extremo meridional do país) e a quarta maior (Tucuruí, no Rio Tocantins, no Pará) hidrelétricas do mundo. Itaipu é considerada uma das sete maravilhas da engenharia moderna mundial. Tucuruí tem o maior salto em esqui já edificado pelo homem (a água que sai pelas aberturas da barragem, depois de movimentar as turbinas).
Os danos socioambientais das duas usinas não podem ser minimizados. Se Itaipu fosse concebida hoje, a sociedade brasileira aceitaria que ela causasse o sacrifício das cataratas de Sete Quedas, que proporcionavam aos visitantes um dos espetáculos mais deslumbrantes da Terra? Tucuruí teria aprovação ambiental para submergir uma área de 3.100 quilômetros quadrados, na qual surgiu o segundo maior lago artificial do Brasil? Só para comparar: o Lago Paranoá, em Brasília, tem 48 quilômetros quadrados.
No entanto, um quarto de toda a demanda nacional por energia é atendida por essas duas hidrelétricas, situadas em pontos inteiramente opostos no território brasileiro, separadas por mais de quatro mil quilômetros de distância. O governo, então, agiu certo ao construí-las, a despeito de seus ônus ambientais e sociais?
Não é fácil nem simples dar uma resposta consistente a essa questão. A legislação ecológica do Brasil só se consolidou a partir de 1981, quando as obras das duas gigantescas usinas já estavam bem adiantadas. Uma prova de que a consciência nacional sobre a natureza e os direitos humanos e sociais avançou é que nenhuma das duas obras seria agora licenciada conforme os projetos originais.
A decisão sobre esses projetos aconteceu na década de 1970. Vigia – e até hoje permanece em vigor – na construção de uma obra o princípio de que ela só passa a ter existência concreta quando sua viabilidade econômica é comprovada. A única alternativa para essa regra de ouro do capitalismo é o subsídio, exceção que lhe nega as melhores virtudes. É quando, mesmo sem poder se pagar, a obra é executada porque alguém assumirá o seu custo, sem se preocupar com o retorno do investimento realizado. Em geral, a exceção só ocorre quando o governo é quem paga a conta. Como governo não produz, a conta é repassada ao contribuinte, aquele que paga impostos.
O que define a rentabilidade de uma hidrelétrica é o seu “fator de carga”. Ou seja: a energia que ela poderá oferecer o ano inteiro. A média é tirada entre o pico da geração, quando há água para acionar todas as turbinas instaladas na casa de força (e ainda sobra para ser vertida de um lado para outro da barragem, sem passar pelas máquinas), e o mínimo do verão. Para que uma hidrelétrica amortize o que nela foi gasto, é preciso que essa energia firme varie em torno de 55% da capacidade nominal de geração.
Tucuruí socorrida pelo Tesouro
Como a diferença de vazão no Rio Paraná não é tão grande, o “fator de carga” de Itaipu é de 61%, acima, portanto, do ponto de equilíbrio. Por isto, a usina é rentável e sustenta o Paraguai, que divide sua propriedade com o Brasil (mesmo sem ter investido na obra).
Já em Tucuruí, a energia média é de 49%. Podia ser um pouco maior e talvez chegar aos 55% desejados. Mas, para isso, a crista da barragem, que é de 72 metros, teria que ser elevada. A inundação se tornaria desastrosa, mesmo sem chegar à catástrofe que foi a Usina de Balbina, no Amazonas, obra também do regime militar (com apenas 3% da potência de Tucuruí, inundou área equivalente a 80% do que foi submerso no Tocantins).
Tucuruí só não levou a Eletronorte à ruína porque, sendo estatal, foi socorrida pelo tesouro nacional. Seus prejuízos cresceram ainda mais porque as duas maiores clientes da Eletronorte, a Albras e a Alumar, duas das maiores fábricas de alumínio do mundo, ganharam tarifas subsidiadas (abaixo do custo de geração).
Instaladas em Belém e São Luís do Maranhão, as duas indústrias, agora sob controle multinacional pleno, são responsáveis por 3% do consumo nacional de energia. Os prejuízos da Eletronorte acabaram sendo absorvidos pelo governo e pela Eletrobrás, a holding do sistema. E repassados para os cidadãos.
As administrações democráticas do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e do operário Luiz Inácio Lula da Silva, seguidas pela companheira Dilma Rousseff, ao contrário do que delas se podia supor na época do regime militar, ao qual se opunham e pelo qual eram perseguidos, pretendem intensificar – e não arrefecer – a construção de mega-hidrelétricas na Amazônia. Parecem convencidas de que os benefícios dessas obras extravasarão seus custos. Vão corrigir os erros já praticados ou repeti-los, agravados?
O teste decisivo está sendo realizado na Amazônia, onde já estão em obras três grandes hidrelétricas, com potência global de 18,5 mil megawatts e investimento de mais de R$ 50 bilhões. Elas interrompem ou dão prosseguimento ao modus operandi do regime militar?
O “fator de carga” de Itaipu, a maior do mundo, é de 61%. A de Tucuruí, a quarta maior, ficou em 49%; por isso a usina do Rio Tocantins, no Pará, teve que ser subsidiada. O fator de carga na hidrelétrica de Santo Antônio é de 70% e na de Jirau, também no Rio Madeira, em Rondônia, é de 57%. Já a energia firme de Belo Monte, no Xingu, ainda em território paraense, está prevista para ser de 40%.
À margem do grosso tiroteio que o projeto tem provocado, duas perguntas elementares precisam ser respondidas: por que a energia média ficou tão baixa? E por que, mesmo assim, o governo decidiu levar avante o projeto?
Para que Belo Monte gerasse mais energia, seria preciso que a barragem fosse mais alta, para aumentar a queda de água na direção das máquinas e, ao mesmo tempo, estocar mais água no seu reservatório para o período de estiagem. Nessa época, a vazão do rio é mínima, insuficiente para acionar uma só das 20 enormes máquinas da usina, cada uma delas necessitada de 700 mil metros cúbicos por segundo.
Com isso, porém, a área de inundação de Belo Monte seria enorme. Alagar tanta terra sempre foi o calcanhar de Aquiles do projeto. Foi o que o manteve congelado durante mais de um terço da sua história, desde que o rio começou a ser inventariado (na segunda metade dos anos 1970, em pleno regime militar), por causa da reação da opinião pública a esse desastre ecológico.
A segunda barragem, de Babaquara, rio acima, concebida para regularizar o Xingu naquele trecho, foi cancelada. O lago de Belo Monte, que era originalmente de 1.600 quilômetros quadrados, foi reduzido a 510 quilômetros quadrados, seis vezes menos do que o reservatório de Tucuruí, o segundo maior lago artificial do Brasil. E a potência instalada de Belo Monte será de 11 mil megawatts contra pouco mais de 8 mil megawatts de Tucuruí. Uma relação energia/área inundada muito mais saudável, portanto.
Ao puxar o lençol do reservatório para cobrir a chaga ecológica do alagamento de terra, os técnicos criaram o projeto da maior hidrelétrica a fio d’água do mundo. Essas usinas são de pequeno ou médio porte justamente porque, sem reservar água para o verão, funcionam apenas com o que flui naturalmente pela bacia de drenagem. Param no verão.
Para quê construir uma enorme estrutura se no verão o vertimento natural será insignificante? É o que explica as duas primeiras hidrelétricas da Amazônia, construídas antes da era das gigantescas usinas, como Tucuruí, terem entre 30 e 40 megawatts, no Pará e no Amapá. Uma única turbina de Belo Monte terá 20 vezes mais potência do que as hidrelétricas de Curuá-Una e Coaracy Nunes. Engenhosos, os engenheiros buscaram uma alternativa. Já que não iam estocar energia para o verão, sugeriram que fosse aproveitado o desnível de 90 metros que há entre o ponto a montante do rio, onde ficará a barragem secundária (no sítio Pimental), de baixa queda, e a casa de força, a jusante, numa distância de 50 quilômetros. É aí que se localiza a Grande Volta do Xingu, um paraíso natural que os críticos de Belo Monte garantem que a usina destruirá.
Para a água descer com fluência, o projeto prevê a construção de canais de concreto na direção da casa de máquinas, aproveitando a drenagem natural. Este é o elemento mais polêmico da engenharia em si: esses canais funcionarão a contento? São seguros contra grandes impactos ambientais? Tratando-se de uma estrutura que utilizará mais concreto do que o aplicado no Canal do Panamá, não são questões irrelevantes.
Os desafios à engenharia, pelo contrário, são imensos. Tão grandes que o orçamento oficial de Belo Monte subiu de R$ 19 bilhões para bem próximo de R$ 30 bilhões, sem incluir mais uns dois terços de investimento na extensa linha de transmissão de energia. Tão incertos que todas as empreiteiras de tradição no setor pularam o balcão: deixaram de ser sócias no projeto de energia para se tornarem suas construtoras. Ao invés de investir, vão faturar com aquilo que mais sabem fazer: realizar a obra em si e, graças ao seu gigantismo, manter seu poder político.
Quem investirá? As estatais, é claro, e seus fundos, mas principalmente com o dinheiro do BNDES, que, não tendo tanto (prometeu entrar com 80% do valor necessário), teve que recorrer ao tesouro nacional; que, por sua vez, se desvia de suas funções mais nobres para garantir a sangria do erário.
De tanto mexer no projeto original de Belo Monte, que era inaceitável (só um regime de força podia impô-lo goela abaixo da nação, como aconteceu com Tucuruí e Itaipu), os engenheiros criaram um monstro, um Frankenstein energético.
Para que ele funcione, o governo (e, no fim da fila, o contribuinte) terá que pagar a fatura. Para que, ao menos no inverno, a maior hidrelétrica do país mande energia na direção sul. Apenas 3% ficarão na própria Amazônia.
Ao invés de fixar a riqueza da região, Belo Monte a sugará. Um modelo colonial com a marca do PT de Lula, de Dilma e de quem mais aparecer.
* Lúcio Flávio Pinto é editor do Jornal Pessoal, de Belém, Pará.
** Publicado originalmente no Jornal Pessoal e retirado do site IHU On-Line.
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